domingo, 21 de junho de 2015

O outro lado da Branca de Neve

Contexto histórico da versão Grimm
No início do séc. XIX a região que posteriormente se tornaria Alemanha, vivia um momento de transição. A atual Alemanha ainda não existia, o que existia era uma frouxa federação reunindo trinta e cinco estados monárquicos e quatro cidades-estado republicanas. Assim permaneceu até o tratado de Viena em 1815 em que se constituiu a Alemanha como tal. Vivia-se a época das guerras napoleônicas que havia resultado na invasão e ocupação de toda a região por tropas francesas e que traziam forte pressão pela imposição de sua cultura e seus valores. Diante deste quadro, os habitantes da região se refugiaram em aspectos culturais específicos, sua história em movimento de resistência e auto-afirmação cultural nacional. Este aspecto tingiu fortemente o romantismo alemão. Os irmãos Grimm, como integrantes deste movimento, estavam no lugar certo, na hora certa, para refletirem este momento.
Esta proto-Alemanha fragmentada era grandemente baseada no sistema medieval feudal em que se observava a presença de uma classe dominante, nobre, e uma classe camponesa. Essencialmente não havia uma classe média, uma burguesia pronunciada. Esta situação está reproduzida no conto Branca de Neve em que podemos observar a presença desta divisão em classes distintas.
Ações culturais como o resgate de contos populares promovido pelos Grimm tiveram papel crucial no império prussiano para a preservação do espírito nacionalista alemão. Mesmo após as guerras napoleônicas elas continuaram a desempenhar papel aglutinador que auxiliou no processo de unificação política que se avizinhava.
Dentro dos contos Grimm, dentre os quais nos ocuparemos especialmente de Branca de Neve, é possível identificar reflexos do contexto de sua época em aspectos como, por exemplo, estrutura a família, emergência da educação, pressões religiosas, estrutura política, transição da tradição oral para meio impresso.

Contexto da estrutura familiar
Na passagem do séc. XVIII para o XIX esperava-se amadurecimento muito mais precoce do que se espera hoje. Não é exagero considerar-se que não existia infância como a conhecemos.  Esperava-se que as crianças trabalhassem assim que fosse possível e eram tratadas como adultas desde muito cedo. Pela incapacidade, até financeira, de as famílias oferecerem ambientes específicos às crianças e a enorme carência de opções de entretenimento as crianças se viam participando das atividades “adultas”. Assim eram expostas aos aspectos “nefastos”, “impróprios” das estórias que os adultos contavam uns aos outros.

(trabalho infantil)

Educação e Religião
Também as alterações que verificavam na educação e religião contribuíram para a retomada literária alemã do período. Ainda que o trabalho infantil estivesse extensivamente presente, por influência da ascendente burguesia, espalhava-se a ideia de que a leitura e estudo da Bíblia seria um caminho para salvação da alma. Em contradição, a Igreja Católica pregava que a salvação somente seria possível através da confissão e penitência. Com o passar do tempo esta difusão da leitura teria profundo efeito na história e política da Alemanha. Ajudou a criar um novo perfil de classe baixa, que conquistou certa mobilidade social pelo acesso a literatura básica, com uma visão filosófica maior da vida e um vigor religioso renovado. 
Os Grimm são tidos em elevadíssima conta em termos culturais e históricos, em que pesem algumas restrições modernas a seus métodos e fontes. A sua coleção de contos considerada, em geral como referencial, é das mais consultadas.
Jacob e Wilhelm Grimm abertamente se posicionavam não como autores/criadores dos contos. Assumiam-se como transmissores. Recontavam e adaptavam narrativas pré-existentes. Porém não se resumiam a meros transcritores, coletores. Moldavam as versões que coletavam imprimindo-lhe linguagem simples e de fácil compreensão. Intervinham “limpando” a linguagem para torná-la mais poética.

Contexto histórico da versão Disney dos anos 1930
Muitos aspectos do filme de Walt Disney “Branca de Neve e os Sete Anões” foram trazidos diretamente da versão dos Irmãos Grimm. Por outro lado, podem-se identificar numerosos aspectos culturais típicos dos EUA dos anos trinta.
Viviam-se os tempos pós-crash de 29. Época de Grande Depressão econômica. Como reflexo das acentuadas dificuldades econômicas, as pessoas eram forçadas, pela falta de opções e recursos, a passar mais tempo em família. Surgiu uma grande demanda por entretenimento de baixo custo para as massas. Foi neste contexto que surgiu filme sonoro e a cores e, neste movimento, a Walt Disney trouxe Branca de Neve para as telas.
Os anos trinta foram um período turbulento para os norte-americanos. Apesar de as recordações da Primeira Guerra Mundial estarem se dispersando, já se prenunciava a próxima grande inquietação na Europa. Apesar do fim da Lei Seca não se ofereciam muitas opções e lazer às camadas mais pobres da população. O surgimento do cinema com fácil amplo acesso do público trouxe uma porta escape da realidade para muitos. Filmes, documentários, desenhos animados ajudaram a anestesiar a atenção das massas sofridas

A Grande Depressão
A quebra da bolsa em 1929 fez os EUA entraram em profunda depressão financeira, com escassez de trabalho e dinheiro. Os americanos viram-se forçados a viverem bem aquém de suas preferências. Esta intensa pressão desencadeou mudanças na cultura americana. As narrativas surgidas neste período, especialmente filmes, se aproximaram de relatos de cunho nacionalista da Alemanha do século XIX. Hollywood buscava promover o espírito americano, engrandecer o senso de nacionalidade, e distrair os americanos da crise econômica vivida. Exibia muito mais interessem em mostrar uma utopia do que como elas realmente eram. O cinema passou a ser revestir de perfil de necessidade que de distração.


(Quebra da bolsa em 1929)

Necessidade Generalizada de Entretenimento
Na segunda metade dos anos 1930 o público adepto de cinema nos EUA girava entre oitenta a noventa milhões de pessoas por semana, (United States Census Bureau, 1930 Census. Isto significa que mais de dois terços dos EUA estava assistindo pelo menos um filme por semana.
Segundo o New York Times, “Branca de Neve e os Sete Anões” teve um público estimado em mais de 800.000 e foi o primeiro a permanecer mais de três semanas em cartaz.
Walt Disney tornou-se sinônimo de transpor contos de fada para as telas. Ao longo de mais de oitenta e cinco anos gradualmente tornou-se a porta de entrada da maioria da população mundial para o mundo dos contos de fadas. Disney não somente inovou com seus filmes animados, mas moldou todo um novo gênero de contos de fada adaptados para o meio fílmico. Apesar de não apresentarem nenhuma reivindicação quanto à autoria dos contos, reivindicam a propriedade de suas versões.

Transposição para filme
A transposição de uma mídia para outra acaba causando mudanças na mensagem, ainda que seja apenas para se respeitarem as regras, restrições e limitações específicas da mídia de chegada.
No período 1930 a 1940 não se atribuía ainda à fotografia o status de arte. Muitos críticos resistiam a admiti-la como tal. Como reflexo também o status do cinema era dúbio. Isto era especialmente agudo para o cinema de animação
Em 1930 havia competição acirrada entre os diversos estúdios pelo público pagante. Todos trabalhavam muito para criar novas ideias e aperfeiçoar tecnologias antes de seus competentes. Os estúdios Disney queriam produzir um longa metragem animado para obterem destaque.
Disney precisava conseguir usar animação de modo realista para se distanciar de um filme realizado com atores humanos. Em “Branca de Neve e os Sete Anões” Disney logrou obter esta mescla de realidade e fantasia. Atualmente a versão da Disney tornou-se a mais popular, a mais traduzida, a mais dublada em línguas estrangeiras e a mais distribuída mundialmente.
A reação da crítica foi dividida, mas basicamente positiva. Ao se verificar o texto da maioria delas, porém, fica clara a falta de familiaridade dos críticos com o conto original.
Tomamos por objetivo neste trabalho, fazer uma confrontação da versão apresentada por Disney com a versão dos irmãos Grimm, que tomaremos como “original” de referência.
Ao contrário do que mostra Disney, para os Grimm Branca de Neve era filha e havia sido desejada pela rainha, sua mãe.
Branca é mostrada no início do filme em trajes esfarrapados, como se fosse serviçal e vê o príncipe. Ela já está mulher formada. No filme Branca é criança de 7 anos.
No filme, Branca mostra forte associação e interação com os animais silvestres. Os Grimm não fazem qualquer alusão a animais no conto.
Segundo os Grimm, a rainha devora o coração e os pulmões que o caçador traz. Não há menção a isto no filme. Na versão de Walt Disney a rainha só pede ao caçador para que lhe traga o coração de Branca de Neve.


Apenas no filme Branca é guiada por animais à casa dos anões e Disney capricha na caracterização do horror no percurso. No conto chega após errar pela floresta.


No filme a casa dos anões está toda bagunçada e Branca logo se põe a arrumá-la. Há contribuição dos animais e várias lições moralizantes. Prepara comida para os anões e eles percebem Branca pela arrumação feita. Branca é mostrada como a dona da casa numa residência assobradada. Ela é também mostrada claramente como figura materna e os anões como infantilizados e incapazes. Demoram a encontrar Branca. Anões recebem destaque muito maior. Branca se oferece para cuidar da casa. Branca manda anões dormir. Branca tem cena de reza. Além disso, os anões ficam atordoados por conta dos beijos na cabeça.

No Conto a casa está meticulosamente arrumada e os anões percebem a presença de Branca pela desarrumação que ela causou. Prova comida já servida. Anões acham Branca rapidamente. Eles é que ensinam Branca a cuidar da casa. Branca “brinca de casinha” com os anões numa casa de cômodo único. Anões pedem que ela cuide da casa
Disney apresenta os anões individualizados, com personalidades próprias. No conto são anônimos.
Cena moralizante do banho dos anões => crianças!!
Rainha faz apenas um ataque, bem-sucedido no filme. No conto são no total 3, sendo que os anões a salvam em 2 deles.


No filme há presença de recursos mágicos para disfarce da rainha, inexistentes no conto.
No filme a madrasta é mostrada passando por pântano sombrio para levar a maçã. Pássaros tentam demover Branca de morder a maçã e depois chamam os anões.
No filme, a bruxa morre caindo de precipício, enquanto no conto ela  morre dançando em sapatos de ferro.
No conto, os anões são apenas situados como mineiros. Já no filme, há detalhes da rotina de trabalho deles, apontando até que são mineiros de pedras preciosas.
No filme, Branca é acordada após um beijo apaixonado do príncipe. Já no conto, ela acorda após levar um tapa nas costas que faz com que o pedaço da maçã saia.



Bibliografia:
Branca de Neve, visitado em 20 de Junho de 2015; http://www.grimmstories.com/pt/grimm_contos/branca_de_neve.
Branca de Neve e os Sete Anões. Direção: David Hand. Disney: 1937.
Washington D. C.: Federal Archives, 1930, visitado em 09 Junho 2015; http://www.census.gov/pubinfo/www/1930facts.html; Internet
New York Times, “News of the Screen: ‘Snow White,’ First to Remain for Fourth Week at the Music Hall, Expected to Draw 800,000,” 31 January 1938, ProQuest Historical Newspapers The New York Times.

Grupo:
Evelise Rabassa de Melo     nº USP: 8072725
Francisco I. Bueno               nº USP: 8024915
João Joakim T. Wagner       nº USP: 809482

Nenhum comentário:

Postar um comentário