A trajetória da personagem Rapunzel através das diferentes versões do
conto
Quando falamos em Literatura
Infantil, logo pensamos no seu principal interlocutor, a criança. É impossível,
ou pelo menos muito difícil conseguirmos dissociar as duas coisas, pois é a
esse indivíduo que esse tipo de literatura se dirige.
O objetivo desse trabalho é analisar
a trajetória da conhecida personagem de nossa (e de tantas outras) infância,
Rapunzel, através de versões de diferentes épocas e atribuídas a diferentes
autores selecionados. Antes disso, no entanto, é necessário conhecer um pouco sobre
a concepção de criança na História, para, então, podermos verificar de que
maneiras esse processo de mudança da personagem se relaciona com a história da
criança.
Durante o período conhecido como
Antiguidade, não havia uma noção clara do que seria a “idade”. Considerava-se
que a humanidade era composta apenas por homens ou mulheres, sem haver uma
distinção clara entre o que seriam adultos ou crianças. As mulheres e as
crianças eram vistas separadamente dos homens, pois eram consideradas
“propriedades”. As crianças viviam misturadas aos adultos, frequentando as
festas, os atos de matança, e participando da vida sexual.
Nas paideias antigas, havia vestígios
sobre alguns rituais de passagem realizados em algumas fases da vida, no
entanto, a noção de idade era bastante diferente da que temos hoje, pois a
ideia da particularidade infantil, que diferencia a criança do adulto, não
existia.
Posteriormente, um “sentimento” novo
aflorava. A criança começou a ser vista diferentemente, como um ser ingênuo e
fonte de relaxamento para o adulto. Nesse imaginário, a criança passou a ser
“paparicada”.
Entre os escolásticos, moralistas e
educadores do século XVIII, surge um autêntico sentimento de infância. Eles já
não consideravam mais a criança como o ser “encantador”, que servia de
“brinquedo” para o adulto, mas a consideravam como uma pessoa que deveria ser
honrada. Essa consideração estava baseada em algumas proposições: a) o homem
(adulto), entre as criaturas de Deus, é o mais perfeito; b) as crianças são
frágeis criaturas de Deus e são, portanto, ainda imperfeitas; c) as crianças
precisam ser preparadas pelos adultos para se tornarem homens racionais.
Essa espécie de conhecimento sobre a
criança liga-se a outro acontecimento importante do século XVIII, a necessidade
de uma nova noção de “família”, a qual começou a se organizar em torno da
criança e passou a lhe dar uma importância tal, que fez com que ela saísse do
“anonimato” de anteriormente. Ela deixa de estar misturada aos adultos, passa a
ter a escola substituindo a aprendizagem como meio de educação, e a literatura
passa a ser convocada juntamente com essa instituição para a formação da
criança, a fim de ensinar os bons costumes, o amor ao próximo, a religiosidade,
entre outros valores.
Nesse contexto, a criança é peça
fundamental da família burguesa e é considerada como frágil, inferior ao
adulto, que precisa ser confinada para não saber nada sobre o mundo, precisando
ter uma simplificação do que lhe era transmitido.
A literatura para crianças e jovens,
nos seus primórdios, então, tem uma estreita relação com a pedagogia e, por
isso, apresenta um caráter moralizante. Ela era formadora de um caráter ético e
moral e se utilizava de textos apropriados para esse fim, constituindo uma
literatura voltada à elite.
Durante a Revolução Industrial, houve
o desenvolvimento da imprensa, que trouxe o livro como a primeira forma de
mídia da época. Os primeiros livros para crianças datam dessa época, na qual um
cânone de literatura infantil enquanto gênero específico começa a ser formado.
Nas próximas seções, elencam-se
alguns dos períodos que foram destacados anteriormente a fim de ancorar
historicamente também os autores de diferentes versões de Rapunzel. São eles: Giambattista Basile, Charlotte Rose de Caumont
de la Force, Jacob e Wilhelm Grimm. Também são apresentadas breves
considerações a respeito da Walt Disney
Animation Studios, empresa responsável pelo lançamento do adaptação
cinematográfica Enrolados (2010).
Os autores e as
diferentes versões
Giambattista Basile
Esse autor italiano foi um dos
primeiros de que se tem relato a criar uma das versões do conto de Rapunzel,
que conhecemos hoje.
Nascido em 1575 e falecido em 1632,
em Giugliano, Camapania, ele foi um soldado enquanto jovem e começou uma carreira
no governo depois de se mudar para Nápoles, em 1608. Mais tarde, ele fez parte
da corte de Mântua de Ferdinando Gonzaga, e, em seguida, mudou-se para
tornar-se governador de vários pequenos estados italianos.
Basile passava mais tempo em casa, em
Nápoles, e, durante sua carreira, ele ficou fascinado com o folclore, costumes,
literatura, música e dialeto do povo napolitano. Ele começou a estudar aspectos
da cultura napolitana e a recolher contos de fadas e lendas populares, e passou
a escrever em um estilo napolitano, com muito “sabor” local, sendo influenciado
pelos os ornamentos e extravagância de seu contemporâneo Giambattista Marino.
Lo cunto de li cunte (1934) foi seu primeiro livro de contos escritos em napolitano, sob o
pseudônimo de Gian Alesio Abbattutis, e foi uma das primeiras coleções baseadas
em contos populares, que serviriam de inspiração para os futuros escritores de
contos de fadas, como Charles Perrault, no século XVII, os Irmãos Grimm, no
século XIX, e para o dramaturgo da commedia
dell’arte Carlo Gozzi, no século XVIII.
Foi referido pelo seu primeiro editor como Il Pentamerone, devido à semelhança com a obra de Boccaccio, Decameron.
(Lo
cunto de li cunti, publicado em Nápole, em 1934)
Em Lo cunto de li cunte, um príncipe, sua esposa e um escravo que
finge ser uma princesa são entretidos durante 5 dias por 10 mulheres, que lhes
dizem 50 histórias, entre os quais estão os contos familiares do Gato de Botas,
Rapunzel, Cinderela, Branca de Neve e Rosa Vermelha, os Três Laranjas, e A Bela
e a Fera. No último dia de contar histórias, a princesa real aparece, conta a
sua história, e expulsa o escravo fingidor.
A versão de Basile de Rapunzel foi
publicada na reunião de contos populares Il
Pentamerone, sob o título de Petrosinella
(em inglês, Parsley ou Little Parsley).
Charlotte Rose de Caumont de la Force
Charlotte ou Mademoiselle de la Force
nasceu na França e era prima do Rei Sol, Luis XIV, que a baniu da corte de
Versailles, devido a uma série de casos escandalosos, e a obrigou a ir viver em
um convento. Quando ela chega ao local, é mal recebida, perde suas vestes
luxuosas e seus belos cabelos, e é colocada para viver na clausura, distante e
sem contato com o resto do mundo. Entretanto, é no convento que Mademoiselle de
la Force encontra uma velha freira, Soeur Seraphina, que a consola e lhe conta
um conto popular italiano, sobre uma jovem que foi tirada de seus pais porque
seu pai roubou um punhado de ervas amargas; pouco antes da jovem Margherita
nascer, sua mãe quase morreu durante a gravidez porque era incapaz de comer. A
seu pedido, o marido roubou um punhado de ervas do jardim do renomado cortesã
ao lado.
De acordo com a história, Selena Leonelli era uma cortesã famosa na Veneza, no século XVI, o modelo favorito de um grande pintor e também uma bruxa poderosa com poderes das trevas. Quando ela pega o pai de Margherita roubando as ervas, ela o ameaça, dizendo que o declararia às autoridades e sua punição para o roubo seria o corte de ambas as mãos. Uma pechincha é feita, e, por isso, os pais precisavam concordar em dar a sua filha para a bruxa.
Em seu sétimo aniversário, Margherita é levada, primeiro a um convento para receber uma educação adequada e, em seguida, a uma torre, onde ela é isolada durante anos, sendo sua única visitante Selena Leonelli em visitas mensais e ritos de sangue. Há segredos monstruosos escondidos na torre, a qual não possui portas nem escadas, e Margherita deve arrastar seus cabelos, que a bruxa usa para subir, até a única janela a cada mês. A única companhia da menina no restante do tempo é sua própria voz, muito bonita, com a qual ela se distraía na esperança de que algum dia alguém pudesse ouvi-la e viesse socorrê-la.
A história contada pela freira deixa
clara a influência da tradição oral para os contos escritos. Trata-se,
portanto, de mais uma versão, da qual não se tem registo escrito, por ser oral,
do famoso conto de nossa Rapunzel, denominada Margherita, nessa ocasião.
Diz-se que, enclausurada,
Mademoiselle de la Force foi uma das primeiras a escrever uma coleção de contos
de fadas e uma das primeiras romancistas históricas do mundo.
Publicado através do pseudônimo
Mademoiselle ***, Charlotte Rose de Caumont de La Force viu sua coletânea de
contos, Les contes des contes, se
tornar um dos livros mais vendidos, o que lhe permitiu comprar a sua liberdade.
Nesse livro, o conto que hoje conhecemos como Rapunzel aparece sob o nome de Persinette (1968), que se refere à mesma
personagem, e que viera a ser adaptado, posteriormente, pelos Irmãos Grimm.
Irmãos Grimm
Conhecer a biografia dos irmãos Jacob Ludwig Carl Grimm (1785-1863) e Wilhelm Carl Grimm (1786-1859) é fundamental para compreender as razões que os levaram a escrever literatura para crianças. Ambos nasceram em Hanau, Alemanha, mas se mudaram com a família para a cidade de Steinau após a morte de seu pai. Moraram ainda em Kassel, a fim de concluir os estudos básicos, e depois entraram na Universidade de Marburg para estudar Direito. Durante este período, os irmãos começaram a se interessar por uma coletânea de poesias e canções da tradição oral alemã, que foram compiladas em três volumes por Clemens Brentano e Achim von Arnim, entitulada Des Knaben Wunderhorn (em Português, A Trompa Mágica do Menino).
Conhecer a biografia dos irmãos Jacob Ludwig Carl Grimm (1785-1863) e Wilhelm Carl Grimm (1786-1859) é fundamental para compreender as razões que os levaram a escrever literatura para crianças. Ambos nasceram em Hanau, Alemanha, mas se mudaram com a família para a cidade de Steinau após a morte de seu pai. Moraram ainda em Kassel, a fim de concluir os estudos básicos, e depois entraram na Universidade de Marburg para estudar Direito. Durante este período, os irmãos começaram a se interessar por uma coletânea de poesias e canções da tradição oral alemã, que foram compiladas em três volumes por Clemens Brentano e Achim von Arnim, entitulada Des Knaben Wunderhorn (em Português, A Trompa Mágica do Menino).
Embora Jacob e Wilhelm já estivessem
coletando os contos, após a morte de sua mãe em 1808, os irmãos assumiram
cargos em uma biblioteca de Kassel a fim de cuidar dos irmãos mais novos. A
partir de então começam a ser publicados os resultados de sua sofisticada
pesquisa, que contemplava lendas e contos alemães: os dois volumes de Kinder - und Hausmärchen (pulicados
respectivamente em 1812 e 1814, conhecidos como Contos de Grimm - embora a tradução mais fiel seja Contos Infantis e Domésticos) e dois
volumes da Deutsche Sagen (1816 e 1818), contendo o total de 585 lendas alemãs.
Embora a autoria do conto Rapunzel seja atribuída aos irmãos
Grimm, a narrativa já circulava no imaginário popular muito antes de Jacob e
Wilhelm publicarem as duas versões que serão analisadas neste trabalho. As versões foram publicadas no primeiro
volume de Kinder- und Hausmärchen, na
primeira edição (Berlim, 1812) e também na sétima (Berlim, 1857). Ao longo deste trabalho, serão elencadas as
principais alterações entre as duas narrativas.
(ilustração de Rapunzel por Otto Ubbelohde para a edição de 1907)
Cabe lembrar que, na época em que os
irmãos Grimm escreviam, a cristianização dos contos era uma tendência, pois a
religião passou a se agregar em torno de uma nova noção de família, ou seja, de
uma nova noção de criança. Logo, a literatura se tornou um método alternativo
de educar as crianças, juntamente com a escola.
Dessa forma, observa-se que na maioria dos contos dos Grimm (e as
diferenças que marcam as duas versões de Rapunzel
são um bom exemplo) as narrativas recolhidas da tradição oral ganharam uma
roupagem que reflete a ideologia do século XVIII.
Walt Disney Animation Studios
Este trabalho também contemplará a
primeira adaptação cinematográfica da Disney para a narrativa Rapunzel, que recebeu o nome de Enrolados (2010). Os detalhes da
biografia de Walter Elias Disney (1901-1966) não receberão tanto destaque como
as anteriores porque esta análise considerará relevante o estilo das produções
da Walt Disney Animation Studios e as
recorrências nas alterações que as narrativas sofrem com relação às versões
mais antigas.
É fundamental destacar que Walt
Disney fundou a Walt Disney Company em
1923, mas a empresa passou por dificuldades financeiras, além de algumas fusões
e divisões até que se consolidasse somente em 1937. Neste ano, lançou-se o
primeiro longa de animação: Branca de
Neve e os Sete Anões. Desde então, os estúdios da Disney reproduziram
diversos títulos que remetem a contos de fadas publicados por muitos escritores
consagrados pela literatura infantil. Alguns exemplos são: Cinderella, A Princesa e o
Sapo e A Bela Adormecida.
Muito embora Rapunzel tenha sido
retratada “em carne e osso” na produção Caminhos
da Floresta (2014), essa análise restringe-se ao filme Enrolados pelo seguinte motivo: neste, o enredo é especialmente
dedicado à narrativa sobre Rapunzel. Uma vez que o objetivo deste trabalho é
analisar a trajetória dessa personagem, bem como as consonâncias e dissonâncias
que se colocam entre adptação fílmica e as versões destacadas, Enrolados é a escolha mais adequada para
o contraste porque oferece um enredo outro que é detalhado em minúcias.
A trajetória da
personagem...
Petrosinella (Parsley)
A versão de Rapunzel contada por
Giambattista Basile, denominada Petrosinella
(ou Parsley, em inglês, que signfica
erva, salsa), tem um início bastante semelhante à versão que conhecemos hoje,
tradicionalmente: a futura mãe de Petrosinella, Pascadozzia, vê, de sua janela,
uma grande plantação de salsa no jardim de uma ogra, e, por desejo, ela resolve
roubar um punhado da erva. A ogra, quando nota que sua plantação havia sido
roubada, promete vingar-se do sujeito que havia tomado tal atitude e quando, em
uma certa manhã, descobre que se tratava de Pascadozzia promete que irá puni-la
e ordena que lhe dê seu bebê, fosse menino ou menina, quando este nascesse.
Quando Petrosinella nasce, é descrita
como uma menina bonita e que causava encantamento ao olhá-la. Aos sete anos de
idade, a menina foi enviada para a escola pela mãe, portanto, caracteriza-se
como uma menina que recebeu educação. Nesse momento, a narrativa se distancia
da que temos por mais conhecida nos dias de hoje, pois a menina, em seu caminho
para a escola, todos os dias encontrava com a ogra, que enviava um recado a sua
mãe, pedindo que ela se lembrasse da promessa.
A mãe, cansada de ouvir a menina
relatar as palavras da ogra, a orienta a dizer “Take it!”, quando a encontrasse novamente. A menina, na vez
seguinte, sem poder imaginar o mal que lhe acometeria (observa-se, nesse
momento, a característica de menina inocente), cumpriu a ordem, prosseguindo o
fato de que a ogra a agarrou pelos cabelos, levou-a para uma floresta escura e
a trancou em uma torre, construída por ela mesma, sem portas ou escadas. Não é
mencionado o tamanho do cabelo da menina como sendo muito longo, como a imagem
que temos no nosso imaginário relativo ao conto, mas é possível pensar que são
bastante longos, pois, em seguida, o narrador conta que na torre há apenas uma
janela, e que para entrar nela, a ogra precisava “escalar” os cabelos da
garota, “como um marinheiro sobe por um mastro de navio”.
Também é possível entender, pela
descrição, que seus cabelos são loiros e cacheados, pois, em um certo dia, Petrosinella,
quando a ogra deixa a torre, resolve ficar à janela, e os coloca ao sol (“Parsley put her head out of the little window and let loose her tresses
in the sun, and the son of a Prince passing by saw those two golden banners
which invited all souls to enlist under the standard of Beauty”). É nesse momento, também, em que
aparece a figura do rapaz, o príncipe, que se apaixona pela beleza dela,
descrita como “um rosto que encantava todos os corações”.
Há,
nessa versão, um outro momento que difere da versão que conhecemos do conto:
não é o príncipe que sobe à torre e a surpreende, mas é ela, que ao vê-lo e
trocar olhares com ele, lhe conta todos os seus problemas e pede por ajuda. A
ogra fica sabendo através de fofocas sobre a conversa da menina com um jovem
rapaz, mas sabe que seria muito difícil a fuga da menina, pois, a menos que
conseguisse encontrar as três nozes enfeitiçadas escondidas na cozinha, não
conseguiria escapar.
Nesse
momento, percebemos mais uma característica de Petrosinella: ela era astuta,
inteligente, pois ouviu a conversa da ogra. Então, quando a noite chegou e o
rapaz estava lá, como combinado, Petrosinella joga seus cabelos pela janela,
pelos quais o rapaz subiu à torre. Com isso feito, a menina o faz procurar as
nozes, pois sabia que eram elas que lhe confeririam a liberdade. Depois que as
acharam, desceram por uma corda e fugiram, em direção à cidade.
(Ilustração de Warwick Goble de
Petrosinella e o Príncipe, procurando pelas nozes enfeitiçadas, presente no
livro Stories from the Pentamerone. London: Macmillan & Co., 1911,
baseado na tradução de John Edward Taylor, 1847).
Ao
perceber que Petrosinella havia fugido, a ogra desceu pela corda e foi atrás da
menina e do rapaz. Mais uma vez, assistimos à astúcia, mas também à coragem de
Petrosinella: o casal, dando-se por perdido, ao ver que a ogra vinha na direção
deles rapidamente, faz com que a jovem se lembre das nozes e atirasse uma no
chão, que, por estar enfeitiçada, fez com que uma fera aparecesse e tentasse
devorá-la. Conforme a ogra se livrava da situação, Petrosinella jogava as outras
nozes, provocando o aparecimento de um leão feroz, com a segunda, e, com a
terceira, o aparecimento de um lobo, sem, entretanto, dar tempo dela preparar
um novo truque para se livrar. O lobo a devorou, e o casal prosseguiu viagem ao
palácio do Príncipe e realizou seu casamento.
Persinette
A Rapunzel narrada por Charlotte-Rose
de Caumont de la Force foi publicada pela primeira vez em 1698. Sua versão do
conto assemelha-se em pouquíssimos detalhes ao enredo que se conhece atualmente
e, por essa razão, esta seção do trabalho oferece uma descrição completa da
história da personagem Persinette.
No que diz respeito ao enredo, é
válido destacar que a narrativa não oferece quaisquer detalhes que digam
respeito ao poder aquisitivo dos pais de Persinette. No entanto, é possível
perceber a relevância de suas crenças, pois logo no início do conto é dito que
ambos participaram de uma peregrinação a fim de se tornarem pais. Ao voltarem,
a mulher engravida e, na sequência, ocorre a primeira cena canonizada da
narrativa: o roubo de salsa em um jardim, seguido pela promessa de que a
criança seria entregue à uma feiticeira logo após seu nascimento.
Assim que a criança foi batizada, foi
levada para viver com a feiticeira em um país distante. A menina recebe o nome
de Persinette (uma derivação do francês persil,
que significa salsa), mas diferentemente da história mais conhecida, não foi
criada em uma torre. Persinette foi agraciada por sua madrasta com a habilidade
de cantar e ser ouvida a sete léguas de distância, além de receber outros dons
de algumas fadas. É indispensável notar que a narrativa não descreve maiores
detalhes sobre a aparência física da garota, ou seja, em nenhum momento
encontra-se menção de um comprimento anormal de cabelo.
A ideia de trancá-la em uma torre
surge apenas depois que Persinette torna-se uma jovem moça. As fadas perceberam
que seria muito difícil mantê-la por perto, pois diversos homens eram atraídos
por sua voz. A narrativa não trata diretamente sobre a personalidade da garota,
a não ser por meio dos julgamentos que outros fazem de suas possíveis ações.
Por exemplo: embora não se tenha notícia de que seu caráter era volúvel ou de
que a jovem pretendia ir embora, a feiticeira diz às outras fadas que a melhor
decisão a ser tomada seria confinar Persinette em uma torre. Do contrário, a
moça certamente iria deixá-las.
Confinada na torre, a jovem possuía
conforto e vivia acompanhada por um papagaio. No entanto, a torre tinha porta
e, para abri-la, era necessário ouvir a feiticeira proferir uma senha:
“Persinette, minha afilhada, jogue seus lindos cabelos para mim!”. É nesse
período de “prisão” em que a jovem conhece o primeiro príncipe que a narrativa
menciona. A partir deste momento, torna-se possível fazer alguma suposição mais
concreta a respeito do caráter da personagem.
Pela primeira vez, Persinette mente
para a feiticeira. Além disso, aceita casar-se com o príncipe somente depois de
obter a promessa de que se tornaria rainha. Assim, observa-se que a jovem de
fato possuía desejos e ambições que não correspondiam ao projeto de vida que as
fadas lhe desejaram. No conto também há uma descrição do que parece ser um ato
sexual entre a garota e o príncipe no momento em que ambos são descobertos pela
bruxa.
Por essa razão, assim que é
descoberta, Persinette perde todos os dons que havia recebido até que implore
por perdão. Para que as coisas voltem ao normal, o príncipe morre e a moça
volta a morar com a madrasta. No final da narrativa, Persinette casa com outro
príncipe, sem jamais ter conhecido seus pais verdadeiros.
Rapunzel em duas
versões: as narrativas dos irmãos Grimm
Comparam-se aqui a primeira e a
última versão do conto Rapunzel, sob autoria de Jacob e Wilhelm Grimm.
Aproximadamente cinquenta anos marcam a diferença entre as duas histórias que,
por serem distintas em aspectos extremamente relevantes, parecem ter sido
escritas por diferentes autores. É importante destacar que no período em que os
Grimm compilavam contos de origem oral, a única versão publicada de Rapunzel
era a de Friedrich Schultz, o responsável por traduzir o conto para o alemão e
por trocar o nome Persinette por Rapunzel.
No tocante às partes cristalizadas do
enredo, não existem mudanças radicais entre uma versão e outra. As alterações
mais pesadas são introduzidas a partir de modalizações no vocabulário, que
visavam uma suavização da narrativa. A versão final da história é a que mais se
aproxima da narrativa conhecida hoje em dia, que parece bem suavizada e mais
próxima do que se entende como literatura infantil.
Narra-se a história de um casal que
não podia ter filhos, até que a mulher engravidou. Na primeira versão, a causa
da gravidez é desconhecida; na última, atribui-se a Deus o poder de conceder
tal dádiva: “Finally the woman came to believe that the good Lord would fulfill
her wish.”. Novamente descreve-se o desejo da mulher pelas folhas que uma
feiticeira cultivava em seu jardim, bem como o roubo das plantas e sua
consequência.
Uma alteração importante diz respeito
ao modo de descrever essa mulher: primeiro ela é descrita como uma fada; na
última versão ela é a mais sinistra das bruxas. Não só essa personagem, mas
todas as outras ganharam descrições mais sofisticadas. É interessante que a
vida de Rapunzel toma menos espaço do conto do que a narração do dilema entre
seus pais e sua futura madrasta.
As alterações mais significativas com
respeito à própria personagem têm a ver com a reformulação de determinados
eventos da narrativa. Os mais afetados foram aqueles que descreviam a atividade
sexual entre Rapunzel e o príncipe. Enquanto no final da primeira versão o
final feliz de ambos era descrito como “living in joy and pleasure”, a última
apenas afirmava que ambos viveram felizes.
Nas duas versões também é
acrescentado um final novo à narrativa, pois nos dois contos a bruxa envia
Rapunzel para o deserto a fim de que ela nunca mais veja o príncipe, nem seja
feliz. O que permanece implícito nas duas histórias é que ela foi para o
deserto grávida e, portanto, já havia tido relações sexuais antes de seu
casamento. Ainda assim, conserva-se a noção de uma garota ingênua, que nunca chegou
a conhecer o mundo de perto e por isso não parece estar consciente do que é
certo ou errado.
A título de curiosidade, recomenda-se
a leitura do livro Bitter Greens, de
Kate Forsyth. A autora compilou nesta obra análises das versões de Rapunzel que
foram selecionadas para este artigo e de muitas outras versões do conto.
Enrolados (Tangled, 2010)
Enrolados
(2010) é uma adaptação fílmica, em desenho animado, do conto de Rapunzel. Por
motivos de extensão tanto do filme quanto deste trabalho, e, também, pelo fato
de ser uma versão mais conhecida da história, o resumo do enredo não será tão
explorado, ficando a cargo do leitor interessado assistir ao filme (que, por
sinal, vale a pena!), cujo link estará
disponibilizado abaixo, nas referências.
A Rapunzel, como retratada por Walt Disney Animation Studios, é
bastante diferente da personagem tradicional, embora possamos recuperá-la
através de alguns elementos contidos tanto em sua caracterização quanto no
“cenário” onde ocorre a narrativa, como a presença dos cabelos loiros, longos e
trançados (“Rapunzel, jogue as suas tranças!”, da história que a maioria de nós
conhece); a torre onde ela fica confinada, sem portas ou escadas, o fato de a
mãe (madrasta) se utilizar do cabelo dela para acessar a torre; a presença de
um rapaz, que formará o par romântico junto com a protagonista, etc.
No entanto, o que se pode observar, especificamente com relação à personagem Rapunzel, é que ela foi adaptada muito mais à realidade da criança ou do adolescente dos dias de hoje, do século de XXI, o que nos leva a pensar, até mesmo, numa possível nova etapa na história da criança, mencionada anteriormente. Rapunzel, como os jovens atuais, é uma menina atrevida, mas que ao mesmo tempo convive com conflitos internos sobre o certo e o errado, sobre satisfazer as próprias vontades e descobrir-se versus desobedecer e desagradar à mãe.
Vê-se também uma certa modernização
da personagem que, embora ainda apresentada com características físicas que
denotam muita beleza, ela carrega, como defesa, uma frigideira, ou seja, um
equipamento moderno. Além disso, demonstra algumas atitudes inconsequentes,
tipicamente adolescente, como se envolver com um rapaz procurado na cidade por
ser ladrão, ou, ainda, frequentar um bar com homens grotescos e agressivos, que
estão em busca do seu “príncipe encantado”.
Entretanto, é possível perceber que
se trata de uma personagem cheia de sonhos, inclusive fantasiosos, de poder ver
as lanternas flutuantes que seus pais, Rei e Rainha, libertavam no céu todos os
anos, como evidenciado pela própria canção de Rapunzel na cena do bar.
Consideramos que um aspecto que chama
bastante atenção e que destoa dos demais, embora de maneira positiva, é o
caráter meio místico da personagem, capaz de fazer com que seu cabelo brilhe e
cure ferimentos ao cantar, além da presença de seu bichinho de estimação (um
camaleão, talvez), com o qual ela interage. Esse tipo de característica não foi
verificado nas outras versões literárias mencionadas anteriormente, portanto,
consideramos que foi uma caracterização inovadora da personagem.
Por fim, no final do filme, Rapunzel tem seu
cabelo cortado, ao tentar salvar seu amado ferido, o qual se torna castanho e
perde seus “poderes mágicos”. Entretanto, descobre-se que o poder não se
encontra só nos cabelos, mas é algo inerente a ela, e, através de suas
lágrimas, ao perceber que o rapaz desfalecia, conseguiu curá-lo. Essa cena
corrobora com a ideia de inovação da personagem na adaptação fílmica.
Abaixo, seguem alguns links de cenas indicadas do filme, as
quais retratam essas características apontadas sobre a personagem Rapunzel em Enrolados:
Cena que mostra Rapunzel como uma
menina sonhadora e com algumas atitudes já mais “modernas”.
Cena de Rapunzel em “crise” pela
descoberta do mundo e a possibilidade de desagradar à “mãe”.
Cena de Rapunzel no bar,
demonstrando que é uma menina sonhadora e de atitudes inconsequentes.
Cena da cura através do canto e do
cabelo “mágico”.
Sobre a personagem
Rapunzel nas diferentes versões
Ao observarmos a trajetória de
Rapunzel nas diferentes versões do conto, tanto em sua forma literária quanto
cinematográfica, foi possível perceber que a personagem vai se transformando de
acordo com a época e, possivelmente, de acordo com a ideia de “criança” que se
tinha em cada uma delas. Percebe-se uma suavização não só da personagem, mas
também do enredo como um todo, uma vez que a criança passa da esfera “pública”
para a “privada”, tornando-se cada vez mais um ser “isolado”, afastado da
sociedade e suas depravações, além do papel pedagógico que a literatura
infantil assume.
Na versão de Giambattista Basile,
observa-se uma caracterização muito mais física e psicológica do que social,
por exemplo. Foi possível ver uma Rapunzel (Petrosinella)
caracterizada com muita beleza, o tempo todo. No entanto, a beleza não a impede
se ser uma garota atrevida e muito astuta, esperta, que consegue lidar com
adversidades, embora enganada pela inocência, inicialmente. Além disso, o que é
interessante é o fato de ser valorizada a esperteza de Petrosinella em
detrimento da do rapaz amado. O final do conto, por outro lado, é mais
“trágico” para a madrasta, o que fornece uma lição de moral sobre as pessoas
que fazem maldades, o que demonstra um caráter pedagógico.
No que diz respeito à versão de
Charlotte de la Force, é marcante a presença da religiosidade nas crenças dos
personagens, uma vez que são retomadas práticas católicas como o batismo e a
peregrinação. Embora a narrativa contemple figuras míticas como as fadas, os
valores que elas transmitem à Persinette vêm de uma matriz cristã. Assim,
torma-se possível inferir que o elemento religioso do conto mimetiza vivências
pessoais de la Force, pois como foi dito anteriormente, a autora produziu sua
própria versão dessa narrativa enquanto vivia enclausurada em um convento.
Também fazem parte da ideologia
católica os valores de obediência e pureza, aos quais a jovem Persinette parece
ser avessa. Todas as vezes em que a garota transgrediu o estilo de vida ao qual
havia sido submetida, sofreu alguma espécie de punição severa. Embora no final
do conto a obediência seja recompensada com um casamento (com outro príncipe
muito rico), a história de Rapunzel não ganha necessariamente um final feliz.
Nas versões publicadas por Jacob e
Wilhelm Grimm, observou-se que da primeira versão para a última buscou-se
suavizar algumas partes da narrativa, principalmente no tocante à sexualidade
que estava presente no relacionamento entre Rapunzel e o príncipe. Também foi
possível notar um movimento que visa a tornar a personagem cada vez mais
ingênua. A última versão editada pelos irmãos Grimm é a que mais se assemelha à
história que é conhecida pelas crianças atualmente, principalmente com respeito
ao nome da personagem, ao seu caráter doce e ingênuo e ao tão esperado “final
feliz”.
Por fim, no filme Enrolados (2010), o que se vê é uma
adaptação da personagem dos contos tradicionais ao cinema, no que diz respeito
às características principalmente físicas de Rapunzel e aos elementos básicos do
enredo, presentes em quase todas as versões. A protagonista aparece mais
“moderna”, com características mais próximas às das crianças e jovens do século
de XXI, por exemplo no que diz respeito à personalidade sonhadora, o
atrevimento, as atitudes inconsequentes, o receio de desagradar à “mãe”, a
realização de atividades mais atuais, presença de objetos mais atuais como
armamento de defesa, entre outras já citadas. Associado a isso, vemos também o
caráter místico presente em algumas cenas do filme, com a presença do cabelo e
das lágrimas “mágicas”, que curam ferimentos junto ao canto, e, até mesmo, as
“luzes flutuantes” que aparecem no seu aniversário.
Para quem tiver
interesse em ler as versões (em inglês) do conto de Rapunzel na íntegra:
Rapunzel: A comparison
of the versions of 1812 and 1857 (Jacob and Wilhelm Grimm)
Stories from Pentamerone, de Giambattista Basile (ver Parsley): http://www.gutenberg.org/files/2198/2198-h/2198-h.htm
(Le cabinet des fées: ou, Collection choisie des contes des fées, et autres contes merveilleux, vol. 6 (Geneve: Barde, Manget & Compagnie, 1785), pp. 43-57).
Para quem quiser
assistir ao filme Enrolados (2010)
completo:
Charlotte Rose de Caumont de la Force: http://fromsmilerwithlove.com/tag/charlotte-rose-de-caumont-de-la-force/ e http://www.kateforsyth.com.au/kates-blog/bitter_greens_the_history_of_the_rapunzel_fairy_tale
Trabalho realizado por:
Isabella Duarte Chaves e Raíssa Silva Santana
Isabella Duarte Chaves e Raíssa Silva Santana
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